Na Igreja da Santa Casa da
Misericórdia de Peniche, distribuído à entrada, encontrei um pequeno mas
interessante folheto que nos fala do naufrágio de um barco holandês em finais
do século XVI ao largo de Peniche, junto ao arquipélago das Berlengas.
Viajava nesse barco Henri
Cornelissen Vroom, famoso pintor holandês, que, com ele, entre os seus quadros,
traria também um antigo retábulo flamengo do século XV.
A existência desse retábulo e o que
ele representa, segundo o relato (transcrito no folheto), em 1688, de um frade
do extinto Convento do Bom Jesus do Abalo, de Peniche, terá dado o nome ao
próprio Convento e à primitiva Ermida do Bom Jesus do Abalo (depois Capela da
Senhora do Abalo), antigos monumentos de Peniche, já desaparecidos.
O folheto transcreve também “a
tradução de um excerto da versão francesa por Henri Hymans da obra "Le
Livre des Peintres", de Carel van Mander, editada em 1604, (…) em que é
descrita a vida de Henri Cornelissen Vroom, de Harlem, e (…) o relato do
naufrágio do famoso pintor holandês na costa portuguesa, defronte de Peniche
(…)”.
O folheto, escrito em finais do
século passado, é da autoria de Carlos Sá, Ex Provedor da Santa Casa da
Misericórdia de Peniche.
«
O RETÁBULO ESQUECIDO
Ao visitante surpreendido que, no final
do século XX, encontra na Capela da Santa Casa da Misericórdia de Peniche um retábulo
flamengo do século XV, identificado como pertencente à Escola de Bruxelas,
"considerado até à data como exemplar único em Portugal", poderá
surpreender, ainda mais, a informação de que a este valioso conjunto
constituído por cinco grupos esculpidos em madeira policromada (objecto de
intervenção de tratamento e restauro, ainda não concluída, pelo Instituto José
de Figueiredo, de que se expõe actualmente só uma parte) ficaram devendo a vida
25 náufragos holandeses que, no final do século XVI, se viram isolados na ilha
da Berlenga.
Porque não se trata de uma lenda mas
de uma impressionante história documentalmente provada, a seguir transcrevernos
a tradução de um excerto da versão francesa por Henri Hymans da obra "Le
Livre des Peintres", de Carel van Mander, editada em 1604, Tomo II, pág.
216, em que é descrita a vida de Henri Cornelissen Vroom, de Harlem, e em que o
relato do naufrágio do famoso pintor holandês na costa portuguesa, defronte de
Peniche, é assim apresentado:
"... Novamente em Harlem com
sua mulher, retomou, depois de algum tempo, o caminho de Espanha, levando
consigo uma parte dos seus assuntos religiosos. Infelizmente foi assaltado na
viagem por uma tempestade terrível e foi preciso que a tripulação e ele
abandonassem o navio durante a noite para se dirigirem num barco, a uma ilhota
rochosa: Los Barlingos (Berlengas), onde conseguiram, não sem terem corrido
grandes perigos, abordar uma pequena calheta, tendo o barco sido, repetidas
vezes, arrojado ao mar pelas vagas furiosas. Não foi sem dificuldade que
conseguiram trepar pelas rochas; e o navio, indo ao sabor das ondas, fez-se em
mil pedaços. A corrente levou a carga para um local da costa portuguesa onde se
encontrava um convento de frades.
Os religiosos, vendo os trabalhos de
Vroom, fizeram representações ao capitão do porto, dizendo-lhe que os náufragos
eram cristãos e não ingleses, habituados a fazer incursões de pirataria ao
longo da costa.
Vroom e o seu grupo, ao todo vinte e
cinco pessoas grandes e pequenas, não encontrando alimento nos rochedos e não
tendo para beber senão a água do Céu, permaneceram três dias em grande aflição
e constituíram um conselho para decidir se, como os danados, devorariam os
rapazinhos a fim de evitar a morte pela fome.
Finalmente fizeram com as camisas
uma grande bandeira, o que deu como resultado os frades enviarem-lhe um barco,
remado por escravos; e um dos monges levou-lhes azeite, pão e vinho, e conduziu
os náufragos a Penice (Peniche), não sem lhes ter perguntado primeiro se eram
ingleses, porque nesse caso tê-los-iam abandonado à sua sorte.
Chegados a terra, Vroom e os seus
companheiros foram sem demora à pequena igreja dos frades para dar graças ao
Céu de lhes ter facultado os meios para a sua salvação. O capitão ou governador
recebeu-os muito bem à sua mesa. Vroom encontrou expostos na casa dele os seus
quadros, uns intactos, outros partidos; não é menos verdadeiro que, sem o
auxílio do Pintor, os marinheiros holandeses teriam perecido infalivelmente.
Como diz o provérbio, é bom ter devotos por amigos. (1)
Dois dias depois deram algum
dinheiro aos náufragos e eles puseram-se a caminho de Lisboa, a pé. Daí Vroom
alcançou Sain-Huves (Setúbal) onde embarcou para a Holanda. …".
*
Em 1688 um frade do extinto Convento
do Bom Jesus do Abalo, de Peniche, descrevendo aquele pequeno mosteiro,
registou em livro, hoje conservado na Biblioteca Nacional de Lisboa, o seguinte
texto:
"... Como da ermida do Bom
Jesus do Abalo veio o nome do nosso Convento de Peniche, pede a gratidão de se
dar neste lugar uma sucinta notícia da origem e da fundação desta ermida.
Não consta ela de papel ou livro
algum mas só está escrita na memória dos moradores de Peniche, onde de pais a
filhos se tem conservado indelével na sua lembrança. Dizem estes que em tempos
mui antigos dando à costa naquele rochedo um navio, entre muitas coisas que o mar
lançara fora tinha sido um caixote em que acharam vários passos da Paixão do
Filho de Deus esculpidos em madeira pintados com as suas cores proporcionais; o
mais principal é o do Calvário onde está o Senhor entre os dois ladrões, com a
assistência de Sua Mãe Mª S.ma a quem como desmaiada com a violência da dor e
do sentimento está sustentando o Evangª e outras Mulheres, donde é provável nem
há mais certeza que da força da comoção ou abalo que fez no coração da Senhora
a morte do Seu adorado Filho, lhe viesse o título, já do Bom Jesus, já da Srª.
do Abalo; pelo qual é nomeada e venerada neste povo..."
*
Infelizmente da Capela da Senhora do
Abalo restam poucos vestígios, por o mar, pouco a pouco, ir derrubando os
fracos terrenos daquela parte da nossa costa. Do antigo Convento do Bom Jesus,
que tão fortemente marcou os primeiros tempos do povoamento de Peniche, também
pouco existe e, lamentavelmente, a ainda possível recuperação do que resta
parece a ninguém interessar.
A memória do naufrágio e da origem
do retábulo actualmente recuperado, que, em 1688, como escreveu o frade, de
"pais a filhos" se conservava indelével na memória do povo de
Peniche, também se perdeu.
O valioso retábulo descrito pelo
monge foi dado como perdido, enquanto, numa Capela da Santa Casa da
Misericórdia de Peniche, tidas como obra de menor valia, se conservavam,
esquecida a sua origem, as peças que o constituem.
O reconhecimento do elevado valor artístico
deste retábulo, como peça de extrema raridade em toda a Europa, e a redescoberta
da sua associação à impressionante história de um dos muitos naufrágios
ocorridos na costa de Peniche são acontecimentos recentes.
Carlos Sá (Ex Provedor da Santa Casa de Misericórdia de Peniche)
(1) Trocadilho com o
nome do pintor: Vroom quer dizer em holandês devoto (Nota de Henri Hymans). »
O Retábulo Esquecido
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