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O Cano da Água dos Stephens

            O lugar de Casal de Malta, na Marinha Grande, teve grande desenvolvimento industrial a partir do Século XVIII quando Guilherme Stephens, por necessidade de água que abastecesse a sua Real Fábrica dos Vidros, por ali fez passar o “Cano da Água”.
            Neste lugar, limitado a Norte pela estrada para Leiria, hoje avenida Vitor Galo, a Sul pela Linha do Caminho-de-Ferro do Oeste, a Oeste pela estrada para a Nazaré e a Este pela Avenida 1º de Maio, viriam a montar-se importantes indústrias: fábricas de vidro, cerâmicas, serrações de madeira e, mais recentemente, fábricas de moldes para plásticos.
            Pelo Casal de Malta passaram também, ainda no Século XIX, a Linha do Caminho-de-Ferro Americano e a Linha do Caminho-de-Ferro do Oeste, e, já no Século XX, a Linha do Caminho-de-Ferro Florestal (Comboio de Lata).
            Pensei, com esta mensagem, aqui deixar algumas palavras acerca, precisamente, do “Cano da Água dos Stephens”. Porém, o que poderei dizer acerca desse património, para além do que me foi dado observar nos meus tempos de infância, onde tudo era brincadeira, e de adolescência, onde havia que estudar e trabalhar para ganhar o sustento, com a agravante de, entretanto, tudo ter desaparecido?
            Tais coisas não eram definitivamente tema de conversa.
            Naquele tempo, por volta de meados dos anos 60, e posteriormente até ao seu desaparecimento, lembro-me de ver por toda aquela zona algumas construções que, não sabendo então do que se tratava, sei agora que pertenciam ao “Cano da Água dos Stephens”.
            Até cerca de 1985, existiu no lugar de Casal de Malta o conhecido Pinhal da Feira. Este pinhal, assim designado por nele se realizar mensalmente uma feira de gado (suíno), era à época confinado a Norte pela Avenida Eng.º Arala Pinto, a Sul pela Linha do Caminho-de-Ferro do Oeste, a Nascente pela linha do Caminho-de-Ferro Florestal (Comboio de Lata) e a Poente pela Estrada para a Nazaré, sabendo-se que, outrora, teria sido bastante maior, sendo progressivamente reduzido à medida que o lugar ia sendo urbanizado, até atingir a dimensão que lhe conheci.
            Era precisamente no Pinhal da Feira que existiam alguns dos vestígios do antigo “Cano da Água”. Tratava-se de um conjunto de três poços, e deles diziam alguns que eram minas de água, mas ao certo poucos saberiam efectivamente do que se tratava. Situavam-se num caminho que, iniciando-se aproximadamente na parte norte do antigo Bairro Património dos Pobres, atravessava o Pinhal no sentido este/oeste.
            A Nordeste, já fora do Pinhal, existia um gigantesco poço em tijolo de burro que, naquela época, já desactivado, tinha lá no fundo grandes silveirões, além de alguma água. Fazia-me medo quando me aproximava, e, como é natural, não sabia bem do que se tratava. Sei agora que era conhecido como “Polão” e não era mais do que um enorme reservatório onde as águas, até ali conduzidas subterraneamente, eram filtradas.
            Outro vestígio do “Cano da Água” aparecia um pouco mais a Norte. Depois de passar no "Polão", o cano subterrâneo vinha à superfície, passando a água a ser conduzida por uma calha em pedra no cimo de um muro. Esta calha era encimada por lajes em pedra, havendo algumas que, por estarem partidas, deslocavam-se com facilidade, levando a garotada a arrastá-las para, com as mãos em concha, recolherem um pouco de água e matarem a sede.
            Este muro e a respectiva calha conduziam a água até ao antigo lavadouro, sendo depois dividida e seguindo caminhos diferentes até chegar à Fábrica dos Vidros.
            Certo de que estas breves memórias visuais, já atenuadas pelo tempo, pouco esclarecem acerca da realidade do “Cano da água”, sua construção, função e operacionalidade, transcrevo o texto “O Aqueduto das Águas”, parte integrante de “O lugar de Casal de Malta”, da investigadora marinhense Deolinda Bonita. Este texto, publicado em 1997 na compilação de textos do Concurso “Conheça os Lugares da Marinha Grande – Sua História”, com edição da Junta de Freguesia da Marinha Grande, esclarece-nos cabalmente acerca do “Cano da Água” e sua história.
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O AQUEDUTO DAS ÁGUAS

            Vulgarmente conhecido por CANO DA ÁGUA, existiu neste lugar até 1977.
            Consta escrito, que anteriormente à vinda dos Irmãos Stephens para a Marinha Grande (1769), parte desta zona era uma vasta charneca, que seguia para sul (Casal da Lebre), na qual estes ingleses exploraram a água necessária à laboração da sua fábrica.
            "Das terras em que se acha situada a mesma decadente Fábrica, e das mais que lhe forem dependentes, em razão das águas, que são precisas à dita Fábrica será obrigado a pagar de todas o justo e devido foro a seus donos sem que os mesmos donos em um ou outro caso possam pretender exorbitantes preços por que em tais termos serão avaliadas por Árbitros peritos e sem atenção ao edifício nelas estabelecido mas sim ao comum valor das terras naquele continente segundo o seu maior ou menor vencimento cujo foro uma vez arbitrado ficará com a natureza de fatuosim, isto a fim de evitar o escandaloso abuso, com que alguns proprietários da mesma terra foram levantando a sua renda depois de estar ali situada a Fábrica com um notório escândalo da razão, e da verdade".
            (Cap. II, do Registo de alguns privilégios concedidos à fábrica dos vidros situada no lugar da Marinha Grande e termo desta cidade, assinado pelo Rei Francisco Xavier de Mendonça Furtado, no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, em 7 de Julho de 1769), conf. Anais do Município de Leiria, Vol. II, pág. 117).
            Captada nas nascentes, limite do Pinhal da Feira, perto de Amieirinha, era depois conduzida através de um conduto subterrâneo até ao "Polão", um reservatório enorme, cilíndrico, que até há poucos anos existia nos terrenos onde hoje passa a Av. da Liberdade, nas traseiras da casa do Dr. Herculano.
            No fundo deste reservatório, existia uma vala circular com areia branca no fundo, por onde circulava a água, sempre pela direita, no sentido dos ponteiros do relógio, saindo depois livre de impurezas, conduto abaixo, acompanhando o actual muro do cemitério.
            Considerando que o terreno desde o Polão até ao cemitério, tinha um declive de cerca de 1,5 m, quando a água atingia aparte final do seu percurso, saía do conduto e passava por uma calha no cimo de um muro que ladeava o caminho até ao Lavadouro. Este muro ("Muro da Calha") com cerca de 1,5 m de altura, tinha o início no actual parque de estacionamento, frente ao cemitério, e terminava alguns metros adiante, sensivelmente no início do caminho da Feira (agora parque de estacionamento da Av. da Liberdade).
            Quando a água atingia o fim do muro dividia-se: Parte dela, caía directamente na calha de uma azenha ali existente desde o tempo dos Stephens, fazendo girar a roda em torno de um eixo que, por sua vez, moía os cereais e mais tarde alimentava o Lavadouro. No meu tempo, eram as próprias lavadeiras que a controlavam, abrindo e fechando o alçapão, conforme necessitassem de água limpa.
            A água do lavadouro saía a céu aberto, pela vala que depois de atravessar os terrenos onde hoje se situa o Centro Comercial Moderno, seguia pelas traseiras da oficina Seiça, atravessava a estrada junto à Orla, e seguia pelo meio da cerca até ao Ribeiro do Arco, perto do Matadouro Municipal, hoje Estaleiros da Câmara. A outra água (limpa), seguia encanada por um caminho muito fundo, em declive (actual Rua Diogo Stephens), passava por baixo do antigo quartel dos Bombeiros, e ia sair junto dos jardins do Palácio Stephens, onde alimentava o lago e as oficinas da fábrica, sendo a excedente conduzida para uma vala secundária, que ia desaguar no Ribeiro do Arco.
            Até há poucos anos, parte deste conduto ainda era visível, quando se transitava pelo passeio da Rua do Barroca. Junto aos armazéns, no meio do passeio, via-se a água correndo através de uma calha, sempre que as lages de cimento estavam partidas, o que era habitual.
            A caminho da Feira, tínhamos de passar rente ao Muro da Calha e, por vezes, a água escorria enlameando tudo. No Inverno, era mais fácil ir à volta pelo caminho da Mãe de Água, que se situava um pouco mais à frente, junto à actual Rodoviária, ladeado de enormes silveirões. Nesse tempo a estrada ainda não existia, e os acessos eram bastante difíceis devido à lama e à fundura dos caminhos.
            Na década de setenta, tudo foi sepultado. Demoliu-se o lavadouro, a Casa do Moinho, o Muro da Calha e construiu-se a Av. da Liberdade. Recordo de quando ali passava, ver a demolição do conduto em toda a sua extensão. Compunha-se de enormes pedras quadradas, que unidas umas às outras formavam o cano por onde circulava a água.
            Considerada actualmente como uma zona nobre da Marinha Grande, devido ao tipo de habitação e outras infra-estruturas ali implantadas nas últimas décadas, Casal de Malta, mesmo assim, deveria ter preservado alguns vestígios do que foi esta obra arrojada do tempo dos Stephens, que na época foi considerada como uma "Obra Exemplar" no desenvolvimento da Marinha Grande. Ou será que evolução é sinónimo de destruição?

         
O antigo lavadouro municipal em 1938, alimentado com água do "Cano da Água"

Poço do “Cano da Água” em 1991. Situava-se no já desaparecido Pinhal da Feira

In: Vários [Concurso “Conheça os Lugares da Marinha Grande – Sua História”], 1997, Conheça os Lugares da Marinha Grande – Sua História, Marinha Grande, Junta de Freguesia da Marinha Grande

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